por Solano Portela
O conceito do crente carnal envolve o entendimento de que na igreja existiriam muitos que permanecem em um estágio inferior e primitivo de espiritualidade mantendo um comportamento virtualmente similar ao do incrédulo.
Essa idéia é perigosa, por que refletimos com ela a tendência renitente (mas não bíblica) de categorizarmos as pessoas em três classes [1] , quanto ao status espiritual dessas perante o soberano criador.
No conceito do "crente carnal", essa divisão tríplice seria:
(1) os incrédulos, (2) os crentes carnais e (3) os crentes espirituais.
O incrédulo, dispensa descrição. O crente espiritual seria uma superior categoria de crentes, dissociada do crente carnal - a categoria inferior. Crente espiritual não representaria, meramente, uma descrição dos salvos por Cristo, uma vez que os "carnais" também o seriam, mas identificaria aqueles que deram o segundo passo de aceitação, em direção a Deus. Já haviam aceito a Cristo como Salvador, mas, em um segundo passo e em uma segunda experiência, o aceitam como Senhor.
Essa idéia do "Crente Carnal" procede de uma compreensão superficial das palavras do apóstolo Paulo, em 1 Cor 3.1-4, e foi popularizada nas notas de rodapé da famosa Bíblia de Scofield. Infelizmente, essa "doutrina" encontrou abrigo em nosso meio, o que nos impele a esse esclarecimento maior.
Como imperfeitos e pecadores que somos, até a nossa glorificação, cada um de nós exibe um grau maior ou menor de carnalidade em nossas atitudes. Existe, portanto a possibilidade, nos crentes, de manifestações de comportamento semelhantes ao do incrédulo - isso écarnalidade no sentido ético/moral, utilizado por Paulo. Ela deve ser exposta, reprovada e a convicção de sua presença deve nos levar aos pés de Cristo em arrependimento sincero e genuíno.
Paulo não chega, entretanto, a transmitir a idéia da existência de uma terceira categoria de pessoas nas quais faltaria um passo adicional à salvação. No contexto da primeira carta aos coríntios, ele deixa claro, no cap. 1, que está escrevendo àqueles que foram santificados em Cristo Jesus. No cap. 2, ele descreve os seus leitores como "recebedores da graça de Deus, enriquecidos em toda palavra e em todo o entendimento" e traça aquela única distinção que é verdadeiramente bíblica: o ser humano natural e o ser humano espiritual - caracterizando o que se encontra ainda morto em delitos e pecados, e aquele que foi alcançado pela graça salvadora de Jesus Cristo.
Esse último, como espiritual que é (isto é: gerado pelo Espírito Santo), tem a possibilidade de discernir o ensinamento do Espírito e de manter sintonia com o Deus Supremo. Por essa razão, o comportamento específico tratado nos versos iniciais do capítulo 3 - partidarismo e espírito de divisão e dissensão (uns de Paulo, outros de Apolo), era incompatível com a fé professada. Paulo vê-se, portanto, forçado a dirigir-se a eles como descrentes procurando-os sacudi-los à racionalidade cristã. Como espirituais, tinham que apresentar crescimento. Não podiam permanecer como crianças e exibir carnalidade.
O ensinamento do "crente carnal" tem o resultado prático de confortar indevidamente aqueles que, mesmo fazendo parte da igreja local, levam uma vida desregrada, fora dos padrões das Escrituras, mas se auto-analisam como pertencentes a essa categoria. Essas pessoas, na realidade, deveriam estar examinando a genuinidade da salvação que professam. Aos que desejarem um tratamento mais aprofundado da questão, recomendamos Existe Mesmo o Crente Carnal? escrito por Ernest Reisinger (SP: Fiel, 1988) e o artigo do Rev. Augustus Nicodemus, "Paulo e os Espirituais de Corinto", em Fides Reformata 3/1, ponto II.B.3.
[1] Outras classificações tríplices errôneas, ao longo da história da igreja, que geram uma hierarquia de crentes, podem ser identificadas. (a) Entre os proto-gnósticos e gnósticos: os crentes eram divididos entre os que possuíam conhecimento espiritual apenas rudimentar e aqueles que possuíam o verdadeiro conhecimento (gnosis), velado aos demais. Teríamos então: (1) os incrédulos, (2) os crentes rudimentares e (3) os crentes iluminados. (b) No terceiro século temos os alegoristas dividindo os crentes entre aqueles que entendiam o sentido mais espiritual e profundo das passagens e aqueles que não conseguiam penetrar além do significado literal do texto. Orígenes, ensinava essa divisão: (1) Os incrédulos e os de mente simples, capazes de entender o sentido comum, histórico da Palavra de Deus, (2) os crentes capazes de entender o sentido espiritual-que se constituía na essência das Escrituras e (3) os agraciados, capazes de entender o sentido perfeito-que representava um sentido espiritual mais profundo da Palavra de Deus, possível de ser expresso somente por meio de alegorias, compreensível somente a essa casta de cristãos. (c) Os Quakers, no século 17, dividiam as pessoas, nesse sentido, em: (q) Incrédulos, (2) os crentes sem a "luz interior" do E. Santo e (3) os crentes com a "luz interior" do E. Santo, que os fazia vibrar, tremer ("quake"). (d) No pentecostalismo, temos: (1) os incrédulos; (2) os batizados com o E.S., ou "recebedores da segunda bênção" e (3) os não-batizados com o E.S., ou "ainda-carentes-de-uma-segunda-bênção" - deixando a expectativa de que sem esta experiência algo estaria a faltar na vida do cristão. Com a "segunda bênção" se atingiria um patamar superior, elevar-se-ia acima do nível do crente comum. Ainda no pentecostalismo, essa hierarquia pode tomar a seguinte forma: (1) os incrédulos; (2) os crentes, mas com fé insuficiente a serem curados fisicamente e (3) os crentes com fé suficiente a receberem a "cura divina".
Fonte: Solano Portela
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